Nada Disso Era Para Acontecer: A tradução da carta de Jordan Love ao Players Tribune
Por JORDAN LOVE
Acho que todo quarterback tem aquele momento de “ferrou”. Não estou nem falando do clássico “Bem-vindo à NFL”.Tô falando daquele verdadeiro “meu Deus do céu, e agora?”.
O meu foi em 7 de novembro de 2021.
Quando você é o reserva, sempre dizem: “Se prepare como se fosse jogar, toda semana.” E você até acredita que está fazendo isso — é engraçado. Mas há níveis nesse jogo. O Aaron testou positivo pra COVID no meio da semana, e meu trabalho era manter o padrão.
Contra os Chiefs. Em Arrowhead. Chris Jones. Frank Clark. Honey Badger. E acho que o Mahomes era overall 99 no Madden naquele ano.
Tudo é tranquilo na sala de vídeo. Você se sente o mais inteligente do mundo vendo tudo na tela. Mas aí você entra em campo de verdade, quebra o huddle no Arrowhead Stadium, e tem o Honey Badger te espreitando na secundária, mudando os esquemas, mandando Cover 0 toda jogada até você mostrar que sabe o que está fazendo. Você tenta ouvir as chamadas do lado de fora com aquele barulho ensurdecedor, e os 10 caras ao seu redor te encaram tipo: “E aí, qual o plano?”.
Cara, eu tava completamente perdido. Lembro da primeira campanha: tô na linha de scrimmage gritando as leituras, e percebo que nem consigo me ouvir. O cronômetro tá estourando, o Honey Badger se aproxima da linha, depois recua, depois avança de novo. Armadilha pura.
E eu só pensava: “Isso aqui não é pré-temporada.”
Levei uma surra no primeiro tempo. Humilhante. Mas eu nunca vou esquecer: quando voltamos pro segundo tempo, eu sabia que podia contar com uma coisa. Lá em cima, na última fileira do estádio — literalmente na última — tinha uma pessoa torcendo por mim. Mesmo que o estádio inteiro estivesse contra mim, eu sabia que ainda tinha alguém comigo.
Minha mãe. Sempre.
Com seus óculos escuros. Mãos entre as pernas. Sem dizer nada. Só rezando pra eu não me machucar. Como sempre foi desde que eu tinha 14 anos. Foi o ano em que perdi meu melhor amigo no mundo — meu pai.
Meu mundo virou de cabeça pra baixo. Quis largar o futebol. Sinceramente, queria largar tudo. Me sentia perdido. E minha mãe fez um acordo comigo: “Se você continuar jogando futebol, eu vou estar lá por você. Sempre.”. Simples assim.
“Não importa se você só estiver segurando a prancheta. Você sempre vai saber que alguém tá na arquibancada torcendo por você.”
Então eu voltei pro segundo tempo em Arrowhead com 75 mil pessoas me vaiando… e uma lá no alto pensando: “Vamos, Jordan. Você precisa jogar melhor. Te amo, mas precisa melhorar.”. E sei que meu pai teria achado isso perfeito.
Ele queria me chamar de Michael Jordan. É sério. Michael Jordan Love. Minha mãe não deixou, graças a Deus.
Quando digo que meu pai me ensinou tudo, é tudo mesmo. Desde que eu conseguia ficar em pé, estávamos juntos no quintal. Futebol, basquete, qualquer esporte. Tem uma foto de quando eu era bebê e ele me colocou em cima de um cavalo de corrida. Eu de fralda, em cima de um cavalo tipo o Secretariat.
O lema dele era: “Tente de tudo.”
Ele tinha uma positividade imbatível. Acreditava de verdade que eu e minhas irmãs podíamos fazer qualquer coisa.
Meus pais eram policiais. Meu pai era sargento da polícia de Bakersfield, minha mãe da patrulha rodoviária da Califórnia. Mas não podiam ser mais diferentes. Meu pai vivia sorrindo. Minha mãe? Ela era o equilíbrio. Rígida. Tinha uma aura que dizia: “Fez o dever de casa?”
A gente tava jogando no quintal e ela chegava com os óculos espelhados da polícia. Todo mundo parava.
“Vocês não têm prova amanhã?”
“Como ela sabe???”
Aquela típica mãe que todo mundo respeita.
Meu pai era meu parceiro. Me buscava depois de um plantão duplo e ia direto comigo pro beisebol. Chegava de farda completa, apitando no cinto, ajudando a treinar. Todo mundo conhecia o “Big O”. Todo mundo amava ele.
Ele sempre estava lá.
E, pra mim, não tem elogio maior pra um pai. Tem uma foto que eu amo: ele apagado na cama, no meio do dia, cansado de tanto brincar comigo. E eu, deitado no peito dele, dormindo também. Era meu parceiro, de verdade.
Antes de 13 de julho de 2013, minha infância foi praticamente perfeita. Mas a vida é assim. A gente acha que tem todo o tempo do mundo. Acha que nada vai mudar.
E muda.
Foi no verão depois do meu primeiro ano no ensino médio. Eu tava jogando basquete. Meu pai em casa. Minha mãe assistindo. Estranhei quando ela saiu no meio do jogo. Não era o normal.
No fim da partida, minha tia apareceu e disse que ia nos levar pra casa. Mas não falou onde minha mãe tinha ido. Fiz mil perguntas. Ela só disse: “Vamos passar lá em casa antes.”. Chegando na casa dela, ficamos no carro. Rádio desligado. Ninguém destrancava as portas. Silêncio. E minha tia tentando se controlar.
“...Seu pai faleceu.”
“O quê? Como assim?”
“Ele se foi. Me desculpa.”
Só lembro de sair do carro e me jogar na grama chorando.
Mas ainda não parecia real. Eu só queria ver minha mãe. Se eu a visse, ela explicaria. Daria tudo certo. Era um engano. Meu pai estava no hospital, algo assim. Mas real? Não podia ser.
Ficamos horas esperando até ela entrar. Quando vi o rosto dela, eu soube. Meu pai realmente tinha partido. Só depois soube que ele tirou a própria vida. Dói dizer isso até hoje. Mas acho que há força em compartilhar. Todo mundo diz aquele clichê: “Era a última pessoa que você imaginaria…”
Mas meu pai... realmente era.
Ele já não era o mesmo fazia um tempo. Escondia isso da gente, mas os remédios pra pressão o afetaram demais. Era um sofrimento difícil de explicar. Minha mãe chamava de “demônio médico”. E era isso mesmo. Ele era a luz do ambiente.
De repente, a luz apagou. A ausência dele foi imensa. Principalmente aos 14.
Em casa, eu lidava melhor. Estávamos juntos. Mas na escola, era difícil. Todo mundo sabia. Ninguém sabia o que dizer. Eu só queria que agissem normalmente. O olhar de pena doía ainda mais. Até o “Você tá bem?” era um gatilho.
Cada um reage à dor de um jeito. Pra mim, a salvação eram as piadas dos amigos — como se nada tivesse acontecido.
Quando o futebol voltou, eu queria desistir. Não era ninguém. Baixinho, magro, reserva no time de calouros. 1,67m, 62kg. Nem cheguei à JV. Só um cara qualquer. No segundo ano, indo pro treino, disse pra minha mãe: “Não quero mais isso. Talvez jogue basquete.”
E ela respondeu, do jeito dela: “Isso não faz sentido, Jordan.”
“Mas eu sou reserva!”
“E daí? Você ama futebol.”
“Mas eu nem jogo!”
Ela me enxergava. Sabia da minha dor. Então propôs:
“Dá mais um ano. Se no fim você ainda quiser parar, a gente para.”
Não consegui dizer não. Saí do carro. Fui pro treino. Continuei. E não virou “o resto é história”. Fui pra JV. Me diverti com meus amigos. No campo, esquecia da dor por algumas horas. Já era uma vitória. No terceiro ano, cresci, entrei pro varsity, mas ainda como reserva. Enquanto outros se comprometiam com LSU, Alabama... eu segurava a prancheta na Liberty High. Mas o técnico Bryan Nixon sempre me dava força: “Você ainda vai crescer. Tenha paciência. Continue.”
No terceiro jogo da temporada, tive minha chance. Joguei bem. E meus colegas me diziam: “J, quando você entra, tudo muda. A bola sai diferente. Você manda bem.”. No fim do ano, recebi meu primeiro "recrutamento". Nem carta era — só um e-mail padrão da Eastern Washington: “Oi [Nome], estamos de olho em você.”
Nem era FBS, mas eu fiquei nas nuvens.
Meus colegas hoje acham que sou de Utah.
“Sou da Califórnia, mano.”
“Então por que Utah State?”
“Porque foi minha maior oferta.”
Logan, Utah. Vambora. Choque cultural? Sim. Mas eu tava lá. Redshirt? Sim. Mas eu fiz parte. E minha mãe ainda voava todo fim de semana.
“Você não precisa vir, mãe. Nem jogo. Nem seguro a prancheta. Só tô lá.”
“Então eu também vou estar lá.”
“Mãe…”
“Tô bem. Te vejo sábado.”
Lá estava ela no aquecimento, acenando da grade.
“É sua mãe ali?”
“É.”
“Mas você não joga.”
“Sim.”
“E estamos em Idaho.”
“Pois é.”
Sempre ali. Igual ao meu pai.
Ela nunca pensou que o filho seria QB da NFL. Só queria saber se eu estava bem. Ser um "late bloomer" nem começa a descrever. Lembro de estar no reforço escolar com o filho do Ray Lewis — Rayshad.
“Você pensaria em ir pra liga antes de se formar?”
“Como assim? A gente nem pode!”
“Pra NFL, mano.”
“Cara, sou QB reserva em Utah State. Quero só o diploma.”
Mas ele acreditava em mim. E com o tempo, outros também.
No segundo ano, assumi como titular. Fomos 11–2. Eu jogava solto. Fluía. Me apaixonei de novo pelo jogo. O futebol me tirou de um lugar escuro. Os amigos, a família… não estaria aqui sem eles. Jamais teria saído de Bakersfield. Muito menos seria quarterback do Green Bay Packers.
Durante anos, tudo que perguntavam era sobre o draft.
Na noite do draft, achei que ninguém mais escolheria QB. Aí o telefone tocou: “Green Bay, Wisconsin”.
“Oi, Jordan. Packers aqui. Vamos subir pra te escolher.”
Acho que basicamente apaguei por 24 horas. A única coisa de que me lembro é da minha família inteira enlouquecendo, e daquela euforia de tipo… Caramba, a gente realmente conseguiu.
Acho que só caiu a ficha mesmo quando comecei a dar entrevistas, e toda pergunta era basicamente:
“E o Aaron?”
Na minha cabeça, eu pensava:
“Como assim? Ele é um dos melhores de todos os tempos. Eu estou aqui pra aprender tudo o que puder com esse cara.”
Mas antes mesmo de eu e o Aaron termos a chance de conversar, a narrativa já estava rolando. E isso me parecia tão louco, porque desde o início, o Aaron foi incrível comigo. Ele me explicou como já tinha estado na mesma situação que eu, e queria garantir que não houvesse hostilidade. Eu disse que só queria aprender e absorver tudo.
Quer dizer, eu tinha sido QB2 a maior parte da minha vida. Pra mim, aquilo não era novidade. Na verdade, era perfeito.
Pensa comigo: você entra na NFL com 21 anos. É um mundo completamente diferente. Nem estou falando só de futebol. Você precisa saber comandar uma sala, saber como falar com caras diferentes, como motivá-los — o que dizer, o que não dizer. Eu pude observar o Aaron lidando com essas situações, e isso foi inestimável.
Claro que também pude vê-lo lançar a bola. Não tem nada igual. Quando ele e Davante estavam juntos no campo de treino, eles não erravam. Literalmente. Eles tinham algum tipo de conexão telepática. O Aaron pegava a bola, dava uma olhada no lançamento do Davante e, em uma fração de segundo, sabia exatamente onde colocar — doot — no ombro de trás. Perfeito. Sem chamada, sem comunicação. Só um olhar.
Aí você o via aos domingos, ditando o ritmo da defesa. Colocando os adversários na defensiva, não o contrário. Na faculdade, você só joga. Na NFL, você precisa manipular. Aprendi isso com o Aaron. Ele sempre dava uma olhada pro banco adversário depois de cada jogada, e eu não entendia o que ele estava fazendo. É um caos lá fora — você tentando receber a jogada da sua própria sideline, a torcida gritando, trocas de pacotes entrando e saindo.
Eu pensava:
“O que ele tá olhando?”
Algumas jogadas depois, caiu a ficha. O banco deles tinha dois reservas entrando meio segundo atrasados, e o A-Rod pegou isso no flagra. Correu pra linha e nos garantiu uma jogada grátis.
Os caras de elite... é como se jogassem dois jogos de xadrez ao mesmo tempo.
É por isso que eu dou risada quando lembro de toda aquela coisa da mídia quando fui draftado, como se quisessem que o A-Rod estivesse no quadro negro dizendo:
“Certo, é assim que se joga como quarterback.”
Mas não é assim na NFL. Você aprende observando como os grandes jogam todo dia em campo — o trabalho de pés, a presença, a postura, as leituras.
Acho que assisti a cada snap que o A-Rod já deu. Mas a maior lição que aprendi com ele foi sobre consistência — dia após dia. Sem desculpas. Sem folgas. Apenas consistência. Ponto.
É engraçado… Quando finalmente assumi em 2023, eu já sabia como era. Hoje em dia, não dá pra ignorar o barulho. Até minha mãe disse:
“Grandes sapatos pra preencher. Você vai dar conta? Tem que jogar bem, senão vão buscar outro quarterback.”
Hahahah. E eu tipo:
“Valeu, mãe. Tá comigo.”
Meu primeiro jogo como titular no Lambeau… parecia que nada dava certo. Jogo ruim. Fomos vaiados em casa. Chegamos no vestiário perdendo de 17 a 0 no intervalo, e eu sentia a tensão no ar. Mas acho mesmo que são esses momentos que te moldam. Ainda penso muito nesse dia — e não só nele, mas em todas as vezes em que estive no fundo do poço nessa jornada.
Houve tantas vezes em que tudo poderia ter ido por outro caminho.
E se eu nunca tivesse ganhado minha chance no terceiro ano do ensino médio?
E se eu tivesse desistido do futebol depois que meu pai morreu?
E se eu não tivesse aquelas pessoas na minha vida que viram algo em mim — e me disseram alguma coisinha que me manteve firme?
Esses são os momentos que vêm à mente quando nada dá certo.
Foi aí que fui pro vestiário no intervalo, com a defesa me olhando tipo:
“Pô, vocês conseguem mover a bola e dar uma força pra gente?”
Na minha cabeça, foi assim…
“Quer saber? Vou ignorar esse barulho todo. Respirar fundo e lembrar o quanto eu caminhei até aqui. Eu sou o quarterback do Green Bay Packers. Eu jogo futebol americano pra viver. Tô realizando algo que nem nos sonhos mais loucos do meu pai aconteceria... A vida é curta demais, cara. Tô aqui por um motivo. Bora curtir isso e soltar o braço.
Voltamos pro campo e o jogo fluiu. Viramos e ganhamos por 18 a 17, e sinto que naquele dia provei algo.
Não só pra torcida do Lambeau, ou pra Nação Packer — mas pra mim mesmo.
“Sou meu próprio homem, com minha própria história. E quero deixar minha marca nessa franquia.”
— Jordan Love
Não sou o Aaron Rodgers. Não sou um cara com pedigree cinco estrelas. Sou meu próprio homem, com minha própria história, e quero deixar minha marca nessa franquia. Quero escrever meu próprio capítulo aqui, seguindo os passos das lendas que usaram esse G antes de mim.
E só consigo pensar em tudo o que isso significaria para o meu pai.
Ele amava assistir ao Donovan McNabb aos domingos — era torcedor dos Eagles, e esse era o cara dele — e me dizia:
“Esse vai ser você lá fora um dia, filho. Esse vai ser você.”
Ele acreditava mesmo nisso? Não sei. Talvez só quisesse me motivar. Talvez só quisesse dar um pouco de confiança pra um moleque magricela de Bakersfield. Eu quero acreditar que ele acreditava. Só sei de uma coisa: ele sempre dizia pra quem quisesse ouvir…
“Meu filho Jordan… Já viu ele lançar? Ele ainda vai ser alguém. Vai ser quarterback.”
Tem sido uma longa estrada, mas... pô, você estava certo, pai.
Quando a gente foi pra Dallas no Wild Card e mandou aqueles caras pra casa, eu sei que você estava sorrindo em algum lugar.
Então, mãe... pai... toda a minha família... E cada pessoa que me apoiou desde os 14 anos… Todo mundo que me disse alguma coisa que me fez continuar acreditando… Todos que tornaram esse sonho possível…
Vocês já sabem.
Chova, neve ou faça sol. Sei que vocês estão comigo. Estarei procurando por vocês. Vejo vocês aí em cima.
— J
JORDAN LOVE
Green Bay Packers
4 de agosto de 2025
Fonte: Players Tribune - Foto: Evan Siegle